Já observou seu familiar querido perder-se no caminho para casa? Ou talvez esquecer nomes de pessoas próximas? A demência vai além do esquecimento comum da idade.
É um conjunto de sintomas que afeta milhões de pessoas. Causa perda progressiva das funções mentais. Afeta memória, raciocínio e comportamento. Muda a vida não só do paciente, mas de toda a família.
Na minha prática como neurologista, vejo o impacto diário nas famílias. A falta de informação aumenta o sofrimento. Por isso, vamos entender melhor esse quadro.
De acordo com Ferreira et al. (2023, p.45), “a demência não é uma doença específica, mas um termo que descreve um conjunto de sintomas que afetam a memória, o pensamento e as habilidades sociais gravemente o suficiente para interferir na vida diária”.
Neste artigo, vou compartilhar o que aprendi em anos tratando pacientes com demência. Vamos falar sobre sinais, diagnóstico e como ajudar quem convive com essa condição.
O QUE É DEMÊNCIA E SUAS PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS
A demência não é parte normal do envelhecimento. É um problema de saúde sério que afeta milhões de pessoas no mundo todo. Muitos acham que é só “coisa de velho”, mas não é bem assim.
Afeta principalmente a memória e o pensamento. Mas vai muito além disso.
Na minha clínica, explico sempre que a demência é como uma chuva que apaga aos poucos as marcas na areia. Primeiro some o mais recente. Depois, lentamente, memórias antigas.
O cérebro perde conexões entre as células nervosas. Isso prejudica a comunicação entre diferentes partes do cérebro.
Conheci um professor universitário brilhante que começou a esquecer palavras durante suas aulas. Logo estava perdendo-se nos corredores da faculdade onde lecionou por 30 anos.
Cada pessoa manifesta a demência de um jeito único. Isso torna o diagnóstico ainda mais desafiador.
TIPOS MAIS COMUNS DE DEMÊNCIA
Existem vários tipos de demência. Cada um com suas próprias características e formas de manifestação. Vamos conhecer os principais tipos que encontro na minha prática clínica diária:
DOENÇA DE ALZHEIMER: A FORMA MAIS PREVALENTE
O Alzheimer é o tipo mais comum. Representa cerca de 60-70% dos casos.
No cérebro, formam-se placas de proteínas anormais. Elas danificam as células cerebrais.
Tive uma paciente de 68 anos que primeiro esquecia onde guardava as chaves. Depois esqueceu como usar o fogão. Por fim, não reconhecia mais a filha.
O Alzheimer avança lentamente. Começa com pequenos esquecimentos. Progride para perdas mais graves.
DEMÊNCIA VASCULAR: CAUSADA POR PROBLEMAS CIRCULATÓRIOS
Esta forma de demência ocorre quando há problemas no fluxo sanguíneo para o cérebro.
Pequenos derrames silenciosos causam danos. A progressão costuma ser em “degraus”.
João, um paciente de 75 anos, tinha hipertensão mal controlada. Um dia acordou e não conseguia mais fazer cálculos simples. Sua mente estava clara em alguns aspectos, mas completamente confusa em outros.
Esta demência pode ser prevenida com controle dos fatores de risco vascular.
DEMÊNCIA COM CORPOS DE LEWY E SUAS PARTICULARIDADES
Esta forma menos conhecida tem sintomas muito específicos.
Além dos problemas de memória, causa alucinações visuais vívidas. Os pacientes vêem pessoas ou animais que não estão lá.
Ana, uma senhora de 62 anos, começou a ver crianças brincando em seu quarto à noite. Sua memória ainda estava relativamente boa, mas tinha flutuações na atenção. Num momento estava alerta, no outro, completamente confusa.
Estes pacientes também têm sintomas semelhantes ao Parkinson. Tremores, rigidez muscular, andar arrastado.
SINAIS DE ALERTA E SINTOMAS INICIAIS DA DEMÊNCIA
Reconhecer os primeiros sinais é fundamental. Quanto mais cedo o diagnóstico, melhor. Muitas famílias demoram anos para buscar ajuda porque confundem os sintomas com “coisas da idade”. Fique atento a estes sinais que observo nos estágios iniciais:
PROBLEMAS DE MEMÓRIA ALÉM DO ESQUECIMENTO NORMAL
Esquecer onde pôs os óculos é normal. Esquecer para que servem os óculos não é.
Na demência, a pessoa esquece conversas recentes. Repete as mesmas perguntas várias vezes. Não se lembra de compromissos importantes.
Um paciente meu guardava a carteira na geladeira. Depois acusava a família de roubo. É diferente do esquecimento ocasional que todos temos.
DIFICULDADES COM LINGUAGEM E COMUNICAÇÃO
Problemas para encontrar palavras comuns são frequentes.
A pessoa para no meio da frase. Busca termos simples. Substitui palavras por “coisa” ou “aquilo”.
Maria, uma escritora de 71 anos, começou a usar palavras estranhas em seus textos. Logo estava tendo dificuldade para manter uma conversa fluida.
Os nomes próprios geralmente são os primeiros a sumir.
MUDANÇAS DE PERSONALIDADE E COMPORTAMENTO
Esta é talvez a parte mais dolorosa para as famílias.
A pessoa antes gentil pode ficar agressiva. O conservador pode ficar desinibido. O calmo pode ficar agitado.
Carlos, um homem reservado e tímido, começou a abordar estranhos na rua. Fazia comentários inadequados sobre a aparência das pessoas. Sua personalidade tinha mudado completamente.
Estas mudanças não são “manha” ou “teimosia”. São sintomas da doença cerebral.
COMO É FEITO O DIAGNÓSTICO DAS DEMÊNCIAS
Não existe um único teste para diagnosticar demência. É um processo cuidadoso e exige investigação completa. Veja os passos que seguimos para chegar ao diagnóstico correto:
AVALIAÇÃO CLÍNICA E HISTÓRICO DETALHADO
O diagnóstico começa com uma boa conversa. Tanto com o paciente quanto com a família.
Na minha clínica, gasto pelo menos uma hora na primeira consulta. Ouço sobre mudanças no comportamento, memória e habilidades.
Pergunto sobre medicamentos. Investigo outras doenças. Busco sinais de depressão, que pode imitar a demência.
O relato da família é ouro puro nessa fase.
TESTES COGNITIVOS E NEUROPSICOLÓGICOS
Aplicamos testes específicos para avaliar diferentes áreas do pensamento.
Memória, atenção, linguagem, capacidade visual-espacial. Cada função tem seu teste.
Uso desde testes rápidos no consultório até avaliações completas com neuropsicólogo.
Acompanho uma professora aposentada que tirou pontuação máxima nos testes simples. Mas quando fez testes mais complexos, as dificuldades apareceram.
EXAMES DE IMAGEM E BIOMARCADORES
Exames como ressonância magnética mostram a estrutura do cérebro.
Buscamos atrofia em áreas específicas. Sinais de derrames antigos. Outras causas para os sintomas.
Em casos específicos, usamos biomarcadores. São testes mais avançados que detectam proteínas anormais.
Recentemente, exames de sangue para detectar Alzheimer estão sendo desenvolvidos. Na minha prática, já uso alguns desses marcadores em casos selecionados.
TRATAMENTOS DISPONÍVEIS PARA DEMÊNCIA
Não temos cura para a maioria das demências. Mas temos tratamentos que ajudam bastante na qualidade de vida. Na minha experiência, quanto antes iniciamos o tratamento, melhores são os resultados. Vamos ver o que está disponível hoje:
MEDICAMENTOS QUE PODEM RETARDAR A PROGRESSÃO
Existem remédios que melhoram temporariamente os sintomas. Alguns podem retardar a progressão.
Para Alzheimer, usamos inibidores da colinesterase e memantina. Eles ajudam com a comunicação entre células cerebrais.
Na demência vascular, tratamos os fatores de risco. Controlamos pressão, diabetes, colesterol.
Prescrevi esses medicamentos para centenas de pacientes. Os resultados variam muito. Para alguns, há melhora notável. Para outros, apenas estabilização temporária.
ABORDAGENS NÃO FARMACOLÓGICAS E TERAPIAS
Medicamentos são só parte do tratamento. Outras abordagens são fundamentais.
Estimulação cognitiva. Exercício físico regular. Terapia ocupacional. Todos têm papel importante.
Na minha experiência, a combinação de remédios e essas terapias traz os melhores resultados.
Roberto, um paciente de 77 anos, melhorou significativamente quando associamos medicação com grupos de estimulação cognitiva e caminhadas diárias.
MANEJO DOS SINTOMAS COMPORTAMENTAIS
Agitação, agressividade e delírios são comuns na demência. São os sintomas mais difíceis para as famílias.
Primeiro, buscamos causas tratáveis. Dor, infecção, efeitos de medicamentos.
Depois, usamos técnicas comportamentais. Só em último caso recorremos a medicamentos para esses sintomas.
Tive uma paciente que ficava extremamente agitada à noite. Descobrimos que ela tinha apneia do sono. Tratando esse problema, a agitação melhorou dramaticamente.
CUIDADOS E SUPORTE PARA PESSOAS COM DEMÊNCIA
O cuidado diário faz toda diferença na qualidade de vida. Não tem remédio que substitua um bom cuidado. Tenho visto pacientes evoluírem melhor quando a família se envolve nos cuidados. Aqui estão dicas que sempre compartilho no consultório:
ADAPTAÇÕES NO AMBIENTE E ROTINA
O ambiente pode ser adaptado para compensar as dificuldades.
Etiquetas nas portas e gavetas. Relógios e calendários grandes. Rotinas previsíveis.
Visitei a casa de um paciente onde a família havia instalado luzes automáticas. Isso reduziu a confusão noturna e as quedas.
A rotina dá segurança ao paciente com demência. Mudanças bruscas pioram os sintomas.
APOIO AOS CUIDADORES E FAMILIARES
Cuidar de alguém com demência é extremamente desgastante.
Os cuidadores precisam de suporte. Grupos de apoio. Momentos de descanso. Informação de qualidade.
Nas reuniões que promovo para familiares, vejo o alívio quando percebem que não estão sozinhos nessa jornada.
O cuidador que não se cuida adoece junto com o paciente.
PLANEJAMENTO PARA FASES AVANÇADAS
Nas fases iniciais, é importante planejar para o futuro.
Questões legais. Decisões sobre tratamentos. Preferências de cuidado.
Na minha prática, incentivo essas conversas difíceis. É melhor decidir enquanto a pessoa ainda pode expressar suas vontades.
Uma paciente gravou vídeos para a família com orientações sobre como gostaria de ser cuidada. Foi um presente inestimável para os filhos.
FATORES DE RISCO E PREVENÇÃO DA DEMÊNCIA
A boa notícia? Podemos reduzir o risco de desenvolver demência. E não é nada complicado. São coisas que fazem bem pra saúde como um todo. Tenho visto isso na prática com famílias que seguem estas orientações:
Estudos mostram que até 40% dos casos poderiam ser evitados ou adiados.
De acordo com Oliveira e Santos (2022, p.112), “modificações no estilo de vida são capazes de reduzir significativamente o risco de desenvolvimento de demência, mesmo em pessoas com predisposição genética”.
Atividade física regular. Controle de pressão e diabetes. Alimentação saudável. Estímulo mental constante. Vida social ativa.
Tenho pacientes de 90 anos com mentes afiadas. O denominador comum? Manter-se física e mentalmente ativo.
Nunca é tarde para adotar hábitos saudáveis. E nunca é cedo demais para prevenir a demência.
CONCLUSÃO
A demência é um desafio enorme. Para quem vive com ela e para quem cuida.
Reconhecer os sinais precocemente faz diferença. Buscar avaliação médica ao primeiro sinal de alerta também.
Nos meus anos cuidando de pessoas com demência, aprendi que cada caso é único. O que funciona para um pode não funcionar para outro.
Não existe jornada fácil com a demência. Mas com conhecimento, suporte e compaixão, o caminho fica menos árduo.
Se você notou mudanças em si mesmo ou em alguém querido, busque ajuda. Dê o primeiro passo.
A ciência avança rapidamente nessa área. Tenho esperança de que, em breve, teremos tratamentos ainda melhores.
REFERÊNCIAS
FERREIRA, A. M. et al. Avanços no diagnóstico e tratamento das demências: uma revisão atualizada. Revista Brasileira de Neurologia, Rio de Janeiro, v. 59, n. 2, p. 42-58, 2023. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbneur/a/2023/v59n2/42-58/
OLIVEIRA, J. C.; SANTOS, M. F. Fatores de risco modificáveis e prevenção da demência na terceira idade. Arquivos de Neuro-Psiquiatria, São Paulo, v. 80, n. 3, p. 110-125, 2022. Disponível em: https://www.scielo.br/j/anp/a/2022/v80n3/110-125/